O Direito Achado na Rua
O Direito Achado na Rua: uma resenha dos 30 (trinta) anos de contribuição crítica e prática ao Direito The Law found on the street: a review of the thirty years of critical and practical contribution to law Murilo Oliveira Souza[1] 1 – Noções introdutórias Um dos grandes debates controversos no campo teórico jurídico reside na formulação de uma teoria capaz de representar demandas sociais, ou seja, transformar os anseios sociais em enunciados jurídicos, o que poderá fazer com que as normas se aproximem daquele ao qual são dirigidas, o povo. Perpassa por esse debate a construção de uma teoria da justiça. O coletivo de juristas que compõem O Direito Achado na Rua não tem isso como objeto central de sua análise (o conceito e sua visão de justiça), no entanto, acredita-se que se aproximam deste campo teórico ao compreender a necessidade de construção de um fenômeno jurídico capaz de atender aos conflitos sociais em geral. Por essa razão, a rua ganha relevância para o coletivo, haja vista ser o campo no qual é possível, a partir de estudos empíricos e interdisciplinares, compreender os movimentos sociais e aproximá-los do universo jurídico. A rua, em sua dimensão metafórica, reside em espaço de materialização de um universo jurídico que seja próximo dos seus destinatários, ou seja, abrange o local no qual o direito é construído, permitindo compreender que as formulações realizadas estão mais próximas da realidade para a qual se dirigem. Mesmo que não haja formulações diretas capazes de materializar em norma, a partir do universo da rua é possível formular uma concepção crítica do direito existente. É com esta preocupação que se desenvolveu o coletivo de O Direito Achado na Rua. Neste ponto, cumpre destacar que o coletivo de O Direito Achado na Rua é composto por juristas, acadêmicos do campo jurídico, bem como de outras áreas afins ao Direito, além de pensadores populares e filósofos com forte inspiração humanista, buscando transformar a realidade jurídica praticada em âmbito brasileiro. Os membros deste coletivo possuem “uma concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática” (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 13). A proposta desta resenha é a de exame da obra intitulada “O Direito Achado na Rua: concepção e prática”. Nesse sentido, busca-se compreender a inspiração teórica que influencia os membros deste coletivo de pensadores, bem como traçar um panorama geral da atuação deste importante grupo de pesquisadores nos seus 30 (trinta) anos de existência. 2 – Perspectivas teóricas e práticas do Direito Achado na Rua A transformação da realidade é uma busca deste coletivo que se dá a partir de projetos desenvolvidos. Naqueles destacados na presente obra, percebe-se que os membros deste grupo contam com um referencial teórico pautado não apenas na crítica, mas também na preocupação da pesquisa dialética. Por essa razão, enfatiza-se que o desenvolvimento teórico de O Direito Achado na Rua está, de modo incindível, colado ao percurso teórico de Roberto Lyra Filho (com pressuposto crítico na dialética) e de José Geraldo de Sousa Junior. Além disso, boa parte da produção sociológico-jurídica brasileira, a partir dos anos 1980, sob a dupla influência da crítica jurídica e da tomada de posição sobre o tema da alternatividade do Direito, também são elementos que influenciaram o coletivo. Soma-se a isso a contribuição teórica do pluralismo jurídico, desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos. Outrossim, sustenta-se que as análises promovidas pelo coletivo derivam de uma interlocução com as propostas e as categorias de Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Santos e Boaventura de Sousa Santos. O coletivo conta ainda com outras importantes referências, tal como Wolkmer (pluralismo jurídico); Eliane Junqueira (sociologia jurídica); José Eduardo Faria (sociologia jurídica); Celso Fernandes Campilongo (sociologia jurídica); Edmundo Lima de Arruda Junior (direito alternativo); Cláudio Souto (direito alternativo), entre outros autores. A matriz de pensamento ao qual o coletivo se filia lhe dá a percepção da necessidade de reconstruir as bases sociológicas que devem permear a construção do Direito contemporâneo brasileiro, aproximando-o do povo. Mas para isso é importante que se tenha uma dimensão material da realidade. O desafio passa a ser a compreensão da crosta de ideologia que permeia as relações sociais construídas na sociabilidade burguesa, tutelada pelo direito, que além de interferir no exercício do fenômeno jurídico, nos impede de ver a realidade. Qualquer construção que não tenha essa percepção pode cair na vala do senso comum. Neste ponto, exímia é a preocupação e crítica do coletivo com o formalismo exacerbado que ronda o Direito. É possível notar, pela obra que ora se estuda, a crítica formulada pelos juristas e estudiosos de O Direito Achado na Rua, com base em teóricos críticos do formalismo e fetichismo jurídico, além de uma constante práxis no intuito de conscientizar os alunos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e de outras instituições de ensino, não apenas brasileiras, membros do judiciário e a população em geral, por meio de pesquisas e trabalhos de extensão, acerca do protagonismo que os movimentos sociais possuem na construção e formulação do Direito a ser exercido. Aliás, isto refletiu diretamente na elaboração do livro, haja vista ser ele fruto deste trabalho coletivo, como aponta o autor na introdução, ao destacar a metodologia empregada na disciplina PAD1 (prática e atualização do Direito) na Faculdade de Direito da UnB. Segundo aponta, o: (...) plano de curso da disciplina, deliberadamente, foi elaborado sob ementa com a mesma denominação do Projeto – O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, desdobrada nos itens também de igual nomenclatura, agora transformado em sumário do livro. Os autores de cada módulo ou parte do livro apresentaram e discutiram com os alunos de graduação da disciplina, os quais, por sua vez, elaboraram seus trabalhos acadêmicos do semestre, com atividades ligadas aos conteúdos ministrados – resenhas, artigos, pesquisas – que foram encaminhados para os autores e as autoras do projeto (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 07). Isto demonstra como a presente obra não reside apenas na reformulação de conceitos e dogmas do Direito, mas busca traçar estratégias para compreender a realidade das dimensões sociais brasileiras. Tal perspectiva possibilita realizar o estudo dos movimentos sociais que emergem na conjuntura atual, além dos conflitos e dos novos sujeitos de direito da atualidade, haja vista os diversos projetos de extensão e de pesquisas realizadas pelo coletivo durante os anos de sua existência. Por essa razão o objeto de pesquisa desenvolvido é o Direito e os novos movimentos sociais. Com isso, os membros de O Direito Achado na Rua pretendem compreender as novas condições sociais que rompem com o formalismo jurídico, que se afasta das realidades sociais, como a emergência de movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos e do pluralismo jurídico, que instauram e reclamam reconhecimento. Tal perspectiva demonstra como o trabalho desenvolvido pelos juristas e pesquisadores que compõem o coletivo O Direito Achado na Rua representa um espaço de resistência para os dias nublados que enfrentamos atualmente, haja vista a retomada do conservadorismo e do neoliberalismo no âmbito político, jurídico e institucional. Assim, no intuito de desenvolver o objeto de análise do coletivo, importantes temas e concepções são desenvolvidas pelos capítulos que compõem a obra, dos quais se destacam: sociologia jurídica, dialética social, educação em direitos humanos, movimentos sociais, pluralismo jurídico, sujeito coletivo, emancipação de direitos, constitucionalismo (achado na rua) e liberdade. No que se refere aos movimentos sociais, estes são abordados como importante elemento para a construção do direito e da perspectiva de sujeito coletivo, mas a obra não se dedica à construção teórica da sua concepção. A presente obra, além de pautar os marcos teóricos do coletivo, busca demonstrar o desenvolvimento da sua práxis durante esses mais de 30 (trinta) anos de existência. Nesse sentido, parte-se da obra de Sousa Junior (1984), no qual o referido autor desenvolve a concepção de sujeito coletivo, para desenvolver e compreender os movimentos sociais e os sujeitos coletivos que foram objeto de pesquisa pelo coletivo. No entanto, não há o desenvolvimento da categoria emancipação, partindo-se da concepção dialética desenvolvida por Roberto Lyra Filho em suas obras. Neste ponto, é importante pontuar como os conceitos teóricos da teoria lyriana são relevantes para o coletivo. Há, no transcurso da obra, o desenvolvimento da percepção de sociologia jurídica, na qual Lyra Filho (1982) busca oferecer uma posição de síntese dialética que capte o jurídico no processo histórico de atualização da Justiça Social, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem. Quanto à percepção da educação em direitos, o coletivo se posiciona e demonstra os inúmeros trabalhos desenvolvidos no tripé ensino, pesquisa e extensão em Direitos Humanos, pautados pela visão emancipatória. Mas uma importante categoria que permeia o coletivo reside na visão pluralista de direito. No que se refere ao pluralismo jurídico, o coletivo pretende defender a possibilidade de existência de várias instâncias de formação e construção do Direito, razão pela qual compreende que a forma jurídica é construída a partir do exercício de um direito comunitário participativo, o que leva à compreensão de que o coletivo pretende dar uma perspectiva prática a concepção de pluralismo jurídico. Admite-se a existência de outros centros de produção normativa, seja na esfera supranacional (organizações internacionais) ou na esfera infraestatal (grupos associativos, organizações comunitárias e movimentos sociais). Isto implica a prática de novos sujeitos coletivos de direito, o que demonstra a importância desta categoria para os membros deste grupo. Conforme desenvolvido na obra, o sujeito coletivo, inspirado na visão de Sousa Junior (1984), consiste na capacidade dos movimentos sociais de transformar suas demandas em necessidades a serem afirmadas como direito. As carências vivenciadas coletivamente se transformam em exigência de direitos a partir da possibilidade da construção de um sujeito coletivo de direito. A relação entre esta dimensão e institutos jurídicos, como o constitucionalismo, permitem a transformação do universo jurídico para atender às demandas emergentes da população. Aliás, no que se refere ao constitucionalismo atual, o coletivo sustenta a importante ideia de democratizar os espaços interpretativos do texto constitucional e, com isso, democratizar também os espaços de construção e solidificação do Direito. A rua passa a ser o espaço plural no qual o povo, aqueles que construíram de forma representativa a norma, possuiria a capacidade de também interpretá-la. Tal percepção, aliada à mutação constitucional, permite que a constituição sempre se mantenha efetiva e atenda aos anseios populares: Se o Direito não nascer na rua, se a legalidade não nascer da informalidade e na periferia, e não se sustentar com base em razões que sejam capazes de mobilizar os debates públicos pela atuação da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem uma perspectiva generalizada, universalizada, instaurada pelas lutas por reconhecimento e inclusão, não ganhar os fóruns oficiais, não ganhar o centro do sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como falar-se em legitimidade democrática? (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 41). O que nos leva à compreensão da relevância de um constitucionalismo achado na rua, sustentado pelos autores nesta obra e desenvolvido especificamente no capítulo quatro. A importância dessa percepção reside no fato de que o impulso dialógico e crítico, atualmente fornecido pelas teorias críticas da sociedade, não é capaz de expressar as demandas coletivas, sob pena de restar definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político. Com isso, o constitucionalismo achado na rua pretende incluir, no direito constitucional, outros modos de compreender as regras jurídicas, propondo uma forma de entendimento do direito como prática social e os compromissos como formas alternativas do Direito oficial. Trata-se de um constitucionalismo que seja capaz de transmitir ao Direito o apelo e os desejos da rua. Por isso, sustenta que a presente obra se dedica a construir reflexões que sejam capazes de superar a problemática do Direito, que tem provocado a distância entre o seu exercício positivo e a realidade dos fatos sociais, o que já foi objeto de análise por outros autores, dentre os quais se destacam Marx (2010), Grossi (2007), Miaille (2005) e Pachukanis (2016), entre outros. Aliás, no que se refere à crítica, os autores se preocupam em elaborar sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurídico, com vistas a formular os fundamentos de uma concepção de Direito livre dos condicionamentos ideológicos dos modelos do juspositivismo empirista e do jusnaturalismo metafísico. A crítica é pautada em compreender o Direito não como a norma exteriorizada, senão como enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade emancipadora. Com a contribuição humanista, busca-se criar um humanismo jurídico, que visa estabelecer um programa com elementos capazes de emancipar os atuais conhecimentos e práticas do Direito positivado contemporâneo, profundamente afetado pelas diversas crises axiológicas da modernidade, pelos niilismos fetichistas e desumanizadores da cultura oficializada, e pelos formalismos tecno-normativistas negadores ou indiferentes à justiça concreta, ao pluralismo democrático e aos direitos fundamentais. Por essa razão, o objetivo do projeto Direito Achado na Rua é o de: (...) orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua, que consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do Direito: 1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como, por exemplo, os direitos humanos; 2. definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 03). Com isso, percebe-se que este coletivo se mostra como um projeto pedagógico de estudo, ensino, discussão e práxis voltado para o exercício de um “direito emancipatório”, que já perdura por mais de 30 (trinta) anos, conforme relatos contidos no transcurso do livro. A própria obra é produto das discussões do coletivo, uma amostra dos inúmeros trabalhos que estes juristas realizaram durante esses mais de 30 (trinta) anos de existência, capitaneados pelo professor doutor José Geraldo de Sousa Junior, cuja origem remete à Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), desenvolvida durante a década de 1980. Isto demonstra a tradição jurídica que O Direito Achado na Rua possui, com reconhecimento nacional e internacional, que pode ser notado pelas diversas citações no corpo do livro, dentre as quais se destacam os ilustres pensadores Boaventura de Sousa Santos e J.J. Canotilho. 3 – Da obra “O Direito Achado na Rua” A presente obra coletiva é dividida em quatro capítulos, além da introdução e do apêndice, cuja elaboração é atribuída a diversos autores. No apêndice, texto que narra a vida e obra de Roberto Lyra Filho, constando importantes informações acerca deste autor, que se tornou referência teórica para os membros de O Direito Achado na Rua. A primeira parte da obra é dedicada à abordagem da concepção teórica do coletivo do Direito Achado na Rua, bem como de sua práxis até o dia da publicação da obra. Por isso, boa parte do capítulo demonstra a influência que a “Nova Escola Jurídica Brasileira” exerceu na formação do coletivo, como se deu o início desse grupo de pensadores e como estruturou-se teoricamente o pensamento voltado a refletir os marcos teóricos de pensamento do coletivo. O passo seguinte na articulação do programa criado por Lyra Filho seria concretizar um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social dos movimentos de vanguarda apoiados pela Nair. Surgia, em 1986, o esboço de O Direito Achado na Rua, projeto que foi extraído do papel apenas após a morte de seu mentor. (...) Com O Direito Achado na Rua, Lyra Filho vislumbrava consolidar a Nair como uma doutrina teórica e prática libertadora, fundada no humanismo dialético (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 73). Nesta primeira parte, ainda é apontada a formulação central da filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho, do Direito como legítima organização social da liberdade. Lyra Filho reconhece que o Direito está inscrito na história, razão pela qual está sujeito às mudanças inauguradas pelo tempo; mas, a partir da dialética hegeliana, o referido autor afirma que o direito é a própria afirmação da liberdade conscientizada e viável à coexistência social de um determinado tempo, com as limitações dos antagonismos e contradições de uma determinada sociedade. Nesse sentido, ao tratar sobre a inspiração teórica da pesquisa desenvolvida pelo coletivo, os autores apontam que O Direito Achado na Rua: Reivindica a pesquisa-ação como método de recuperação das ausências produzidas na pesquisa em Direito, e produz trabalhos científicos que se orientam por uma atitude filosófica que busca descortinar as categorias do Direito do manto ideológico do binômio jusnaturalismo-positivismo, descobrindo-as na realidade histórica em sua manifestação ontológica na práxis social (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 92). Na primeira parte da obra é reforçada a visão de como O Direito Achado na Rua emerge como um projeto de enunciação e práxis de uma nova concepção de Direito: o direito como liberdade. Assim, a partir de uma práxis essencialmente implicada na relação entre universidade e a realidade social, como a liberdade que lhe dá fundamento. Os membros do coletivo acreditam que é possível existir um direito que emerge dos espaços públicos. A segunda parte da obra é dedicada à análise da fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Neste capítulo é apontado, além da formulação epistemológica do Direito Achado na Rua (o direito alternativo e o direito insurgente), todo o conjunto de crítica acadêmica realizada sobre determinada obra ou marco teórico. A proposta é desenvolver o espaço crítico realizado pelos pesquisadores e professores vinculados a esse coletivo. A obra procura inicialmente colacionar aquelas críticas com comentários epistemológicos, que apontam para o reconhecimento da cientificidade deste campo, seu objeto e método de estudo, sua classificação e relação com outros campos do conhecimento. Num segundo momento, são expostas análises sobre algumas críticas de O Direito Achado na Rua. Nesta parte, é possível notar a relevância que a concepção acerca do pluralismo jurídico possui para esta matiz de pensamento, haja vista que, para eles, O Direito Achado na Rua está inserido na perspectiva da diversidade de modelos e autorias, desde conservadores até radicais, ao adotar a supremacia de fundamentos éticos, políticos e sociológicos sobre critérios técnicos, formais e positivistas. Não bastasse isso, ainda é assinalado que o projeto de O Direito Achado na Rua busca a superação da separação entre teoria e prática, razão pela qual propõe que se desloque o olhar para as diversas fontes do Direito, saindo do mundo abstrato para o da sociedade concreta, desigual e contraditória. Com isso, esse grupo de pensadores reconhece o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais também como enunciadoras de direitos. O traço mais saliente desse conhecimento jurídico crítico é o desaparecimento da ideia de neutralidade do Direito. Para isso, dois elementos, ignorados pela matriz positiva, adentram como essenciais a esta nova apreensão da realidade jurídica: a educação e a prática jurídica. O que se percebe é que o coletivo O Direito Achado na Rua busca, por meio do estudo empírico e da práxis, romper com o excesso de formalismo do Direito, no intuito de assegurar uma prática jurídica que melhor se amolde à realidade e, consequentemente, seja legítima e eficaz. Significa dizer que o objetivo é transformar o Direito, eliminando o abismo existente entre as normas postas e a concretude das relações sociais, razão pela qual propõe aliar teoria à prática nos postulados da sociologia jurídica. No intuito de demonstrar a práxis exercida pelo grupo, é destacado no transcurso do capítulo que, no âmbito acadêmico, o coletivo mostra-se presente na pós-graduação e na graduação, por intermédio da temática oferecida na disciplina de Prática e Atualização do Direito 1, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), além de uma linha de pesquisa própria no âmbito da pós-graduação. As ações do coletivo refletem na produção acadêmica dos alunos do curso de Direito, pois tendo em vista que os discentes passam a ter contato desde cedo com a crítica proposta pelo O Direito Achado na Rua, nota-se que há uma crescente produção de artigos, monografias, dissertações e teses sensíveis aos problemas da sociedade brasileira. Por derradeiro, citam as duas experiências extensionistas articuladas pelo O Direito Achado na Rua: a Assessoria Jurídica Popular (Ajup) e as Promotoras Legais Populares (PLP´s). Reforçam, ainda, o trabalho interdisciplinar que está sendo realizado pelos professores e membros do coletivo com a criação do programa de pós-graduação em Direitos Humanos, pelo Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), na UnB. A terceira parte da obra aprofunda-se na análise das exigências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e em Direitos Humanos desenvolvidas pelo coletivo. Nesta parte encontra-se a compreensão do coletivo acerca das categorias liberdade e emancipação, compreendidas no campo do Direito e dos Diretos Humanos como áreas de conhecimento e intervenção necessárias para a transformação social. O presente capítulo mantém o esforço coletivo anteriormente destacado quanto à reflexão da práxis social, mas tal compreensão é aprofundada na experiência de luta por justiça e por direitos, a partir da ligação entre a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e Direitos Humanos. Neste ponto é retomada a metáfora da rua, ela que, em sua amplitude de possibilidades, diretas e populares de construção de relações, ressignifica a liberdade, como metáfora para a compreensão de um direito que se delineia com as lutas protagonizadas pelos movimentos sociais. É a partir de tais preceitos que são realizados o ensino e pesquisa em Direito pelo coletivo. O que se percebe é que este coletivo busca impor aos programas desenvolvidos uma teoria dialética do Direito, com forte inspiração na tradição hegeliana e certa influência de autores marxistas, no intuito de promover uma reflexão crítica aos postulados do positivismo. Neste ponto, inclusive, no que se refere à crítica lyriana acerca dos postulados positivistas, o autor aponta que “tomar a norma pelo Direito; definir a norma pela sanção; reconhecer apenas ao Estado o poder de criar normas e sancionar; curvar-se ante o fetichismo do direito positivo; e fazer do direito um elenco de restrições à liberdade (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 160). Logo, se a busca é construir uma concepção de Direito como legítima organização social da liberdade, a crítica evidencia as limitações do objeto, do sujeito e das análises possíveis no campo jurídico. Portanto, evidencia-se o projeto de ensino em Direito desenvolvido pelo coletivo que engloba a pesquisa-ação, o ensino crítico para alunos de pós-graduação e de graduação, bem como a extensão popular, reforçando a importância de que é necessário romper com o ensino tradicional no curso de Direito e, também, assumir a responsabilidade de impulsionar um projeto contra-hegemônico de ensino jurídico e formação profissional em Direito e Direitos Humanos. A quarta e última parte da obra é dedicada à análise dos desafios, das tarefas e das perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua. O capítulo reforça a intenção libertária e transformadora que o projeto possui, pautado no objetivo de unir prática e teoria para fundar novas e criativas possibilidades de pensar o Direito. Em virtude da própria natureza do projeto, aliado aos movimentos sociais, é possível notar a constante renovação que possui, o que implica em permanente atualização dos desafios postos, de acordo com as transformações do conjunto da sociedade. Por essa razão, não há a pretensão de encerrar qualquer discussão concernente ao projeto, cabendo aos seus membros manterem-se atentos à atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e aos anseios da complexa sociabilidade capitalista e de suas relações sociais que demanda uma resposta do fenômeno jurídico voltado para os valores que norteiam a crítica dialética social proposta em O Direito Achado na Rua. Não bastasse isso, ainda é importante que se estabeleça modelo atualizado de investigação que busque determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais emancipatórias do grupo. Um importante desafio traçado no capítulo é a necessidade de estabelecer uma educação emancipatória em direitos no movimento contraditório da sociedade conforme o passar dos anos, mantendo o horizonte de atuação de uma Universidade Emancipatória pensada por José Geraldo de Sousa Junior, qual seja a de uma linha de pesquisa e um movimento teórico-político que surgiu com a proposta da nova escola jurídica, cujas matrizes teóricas estão na dialética social e no pluralismo jurídico. Isto implica no reconhecimento da possibilidade de construção de um direito em outros espaços para além do Estado. 4 – Considerações finais Ao final da leitura, é possível notar que o coletivo denominado como O Direito Achado na Rua possui posição científica no sentido de crítica ao positivismo jurídico, além de problematizar o jusnaturalismo, na perspectiva de construir uma ciência jurídica antidogmática. Na realidade atual, verifica-se como este coletivo se apresenta como um projeto construtor de novas formas de se fazer e pensar o Direito à luz do pluralismo jurídico. Os mais de 30 (trinta) anos de existência demonstram uma riqueza de experiência no desenvolvimento do ensino jurídico a partir dos seus postulados teóricos, o que demonstra a possibilidade de aliar o conhecimento teórico com a práxis popular. A atuação dos inúmeros projetos destacados na obra possibilita aproximar a universidade e o conhecimento teórico das reais demandas da sociedade por meio do diálogo direto com os movimentos sociais organizados. Não há dúvidas de que o conhecimento produzido contribui e incentiva a construção de outras formas de ensino jurídico para além daquele exercido, fundamentado nas questões atuais de conflitos de direitos. Referências GROSSI, Paulo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 3ª ed. Lisboa: Editora Estampa, 2005. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo editorial, 2016. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e prática. Coleção Direito Vivo. Vol. 02. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para uma crítica da eficácia do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984. [1] Doutorando do Programa de Pós-graduação em Política Social pelo Dinter UFMT/UnB. Mestre em Direito pela UERJ. E-mail: [email protected]
Datos bibliográficos
Título traducido: | The Law found on the street |
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Título de la revista: | Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal |
Autor: | Murilo Oliveira Souza |
Idioma: | Portugués |
Enlace del documento: | http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/54 |
Tipo de recurso: | Documento de revista |
Fuente: | Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal; Vol 1, No 2 (Año 2019). |
Entidad editora: | Defensoria Pública do Distrito Federal |
Derechos de uso: | Reconocimiento - NoComercial - SinObraDerivada (by-nc-nd) |
Áreas de conocimiento / Materias: | Ciencias Sociales y Humanidades --> Criminología Ciencias Sociales y Humanidades --> Derecho Ciencias Sociales y Humanidades --> Sociología |
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Documentos citados: |
GROSSI, Paulo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. GROSSI, Paulo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para uma crítica da eficácia do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984. |
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